
Durante audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada no último dia 5 de agosto, especialistas de diferentes áreas ligadas à saúde defenderam uma regulação cuidadosa, colaborativa e adaptada às especificidades do setor para o uso da inteligência artificial (IA). O debate foi promovido pela Comissão de Saúde da Câmara, a partir de requerimento do deputado Ismael Alexandrino, com o objetivo de discutir as diferentes aplicações da IA no setor e suas implicações regulatórias.
O presidente do Instituto Coalizão Saúde (ICOS), Giovanni Guido Cerri, destacou a relevância da transformação digital para garantir sustentabilidade ao sistema de saúde brasileiro. “A saúde precisa de sustentabilidade financeira. A grande ameaça hoje é o financiamento, e a tecnologia tem papel fundamental para reduzir desigualdades, melhorar o acesso e diminuir custos”, afirmou. Cerri defendeu que a inteligência artificial seja vista como uma aliada da eficiência e da segurança do paciente. “O grande beneficiado é o paciente”, reforçou.
O presidente do ICOS argumentou também que a maior parte das aplicações da IA na saúde não apresenta alto risco e que uma regulação restritiva pode inibir o desenvolvimento tecnológico nacional. Para Cerri, a governança da IA deve envolver todos os atores do ecossistema de saúde e evitar a sobreposição de competências entre agências reguladoras. “A regulação deve ser colaborativa e incluir governo, usuários, desenvolvedores e a indústria”, disse, também defendendo o estímulo à produção nacional de algoritmos adaptados à realidade brasileira e a capacitação de profissionais de saúde para o uso dessas tecnologias.
Marco Bego, representante do Inova HC, reforçou que a proposta de regulação da IA precisa ser convertida em instrumentos práticos, especialmente na saúde, onde as decisões impactam diretamente a vida das pessoas. O especialista alertou para o risco de desincentivo à inovação caso não haja flexibilização de responsabilidades em ambientes de teste, os chamados “sandbox”.
“Se a responsabilização for igual à de sistemas já aprovados, quem vai querer testar?”, questionou Bego, para, em seguida, defender mecanismos formais de articulação entre autoridades setoriais e um modelo de governança técnico-institucional tripartite, envolvendo governo, ciência e setor produtivo. “A saúde opera com sistemas complexos de IA, e a regulação precisa reconhecer essa estrutura integrada”, observou.
O presidente-executivo da ABIMED e Conselheiro do ICOS, Fernando Silveira Filho apontou a necessidade de um marco legal que seja “proporcional, razoável, previsível e favorável à inovação”, com base em princípios gerais que evitem a duplicação de obrigações regulatórias. Ele defendeu que a regulação não se restrinja apenas aos riscos, mas também leve em consideração os benefícios da IA à sociedade. “A área de saúde já opera há décadas com regulação baseada em riscos, como faz a Anvisa. É preciso reconhecer e valorizar essa estrutura já existente”, pontuou.
Representando a Anvisa, Anderson de Almeida Pereira explicou que a agência já classifica softwares com IA conforme o nível de risco, avaliando aspectos como segurança de dados, eficácia clínica e desempenho. “O Brasil participa de fóruns internacionais de regulação e estamos alinhados com as melhores práticas globais”, disse. Pereira reforçou que todos os softwares devem ser submetidos à Anvisa por meio de dossiês técnicos e que as empresas desenvolvedoras são responsáveis por eventuais falhas.
Também convidado para a audiência, o professor Guilherme Forma Klafke, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apresentou dados de um estudo conduzido em parceria com o ICOS e o Inova HC, que mapeou mais de 600 documentos e iniciativas sobre regulação de IA em 72 países.
Segundo o acadêmico, a maior parte das nações ainda adota uma regulação mais leve, por meio de diretrizes e guias não vinculantes. Por isso, defendeu que o Projeto de Lei 2338/2023 seja uma oportunidade para consolidar competências regulatórias, evitar sobreposições e garantir segurança jurídica. “Uma regulação mal calibrada pode desmontar estruturas existentes e provocar judicialização desnecessária”, alertou.
Representando o Governo Federal, a secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad, destacou que a pasta acompanha de perto as iniciativas relacionadas à IA, tanto no âmbito nacional quanto internacional. Ela mencionou a participação do Brasil em fóruns da OCDE, OMS e BRICS, além da atuação em projetos aplicados por meio do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PIBIA) e do programa SUS Digital. Ana Estela enfatizou a importância de uma governança eficaz e contínua. “A IA na saúde é um coadjuvante do cuidado e jamais substitui a relação entre profissional de saúde e paciente”, afirmou.
Entre os exemplos apresentados pela secretária, estão iniciativas para uso de IA na previsão de compras de medicamentos, detecção de irregularidades em procedimentos hospitalares e gestão de filas por meio do programa Agora Tem Especialistas. Ana Estela defendeu que uma eventual regulamentação específica na saúde aguarde a consolidação do PL 2338,que regulamenta o uso da inteligência artificial (IA) no Brasil e já organiza conceitos fundamentais sobre agentes, direitos e inovação. “A regulação precisa estabelecer critérios clínicos de risco, prever auditorias independentes e manter um canal regulatório unificado entre o Ministério da Saúde e a Anvisa”, concluiu.